Friday, February 24, 2006

O Viajante

Que reinos, que cidades, que névoas,
Ou sóis perderam e encontraram
Ó, viajante.


JJMF, in Diários de amor perdido

Sentimental viajor, senta à varanda de seus antepassados
como no levadiço de antiga nau,
procurando palavras e sentimentos
entre girassóis e folhas de bananeira,
e balança a cadeira que é de balanço
e pensa com os pensamentos que são palavras:
e tudo o que pode dizer é um Boa-Tarde aos homens
que passam carregados pelo tempo viajante,
enquanto uma aeronave cruza o céu avermelhado do sol que morre..

JJMF, in Périplo

Ulisses adormecido

Uma vez deitei ao teu lado e lá fiquei.
Todos os dias meu corpo se levanta
e segue seu caminho.
Mas eu... eu estou lá, deitado ao teu lado,
silente, transparente, anímico, ardente,
repousado em teu silêncio,
onde palavras, todas elas símiles
à palavra amor,
não mais soam, mas,
como setas de teu ardor potente,
atravessam a carne e dissolvem o tempo.

Não tive, nesta vida, morte melhor.
Desencarnado a viver no umbral do teu amor.

JJMF, in O mar de Ulisses

1.

Ó MAR DE ULISSES ENCAPELADO
visgo negror de tuas entranhas
leão rampante de teus navios
singrando sem velas em desatino.

Tuas chagas e vestes, tua púrpura
escura, ó deus dos amores,
leva-me em tua nau a dobrar-me
sob teu lastro.

Me conduzes e te conduzo,
um a leste, outro a oeste,
um partindo, outro chegando,
fim e princípio entremeados.

Teu mapa é vasto, teu olho, infindo,
teu rosto, a bússola por que me conduzo,
teu olhar, luz no horizonte, lua altiva, sol a pino.

Me ergues acima de mim, te ergo acima de ti
e enroscados e enredados de prazer,
diluímos as horas em brevíssima música,
tua flauta antiga, meu ardor eterno.

Nunca viveste outro início de carne,
folguedo e palavra. Teu assombro
é teu segredo, meu deus, minha lavra.

Jamais te perco por seres meu.

2.

DESERTO ARREFECIDO
areal de tuas entranhas,
oásis em meio ao mar de areia
que te descobre insano.
Eras tua própria sombra
ocaso, medo, engano,
e eu miragem de heras
a cobri-te o sonho, a nódoa, o dano.
Deixaste para trás a aurora,
outra semeadura de tua fala,
outro tombar e reerguer-se,
como infinitamente fazes de teu arco.
Ergues o braço,
nada te fere, nem nada passa.
O tempo se molda para ouvir-te
e tua voz mescla-se ao infinito
de ti mesmo.

3.

ENQUANTO A TERRA NÃO TE ACOLHER INSONE,
perderás todos os dias a fiar o trigo,
este feixe de espadas, cimitarras,
logos de teu cérebro disperso.
Seguirás, viajante de outras horas,
amiúde, febre, tântalo translúcido,
sobeja a fronte desperta de alfazemas,
cânticos, nódulos, pressentimentos.

4.

NÃO MAIS O SENTIMENTO SECO
não mais a carne ausente
não mais o olho vago
teto sem comprimento
pastagens de tua casa.
Caminhas adiante
sem que te esperem e passem.
Ouvirás todo murmúrio
à tua volta
como som de concha
mar bravio
vento no trigal
chuva sobre as folhas.
Restam teu rosto lívido
minha fronte espessa
teu coração liberto.

5.

TUDO EMPALIDECE
quando olhamos apenas para um ponto
e ele nos atrai por tudo que significa,
seja antes ou depois do encontro.
Fica como uma ilha em meio ao oceano,
em que nada mais se vê em um raio de quilômetros.
O horizonte é líquido como a esfera terrestre.
Os desertos jorram águas infinitas
e infinitos olhos habitam planícies
onde antes nada havia.

6.

ATIRAMO-NOS CONTRA O ESPELHO
e mergulhamos em nossa própria imagem,
o que sonhamos acordados,
despertos, vemos,
toda realidade oblíqua e translúcida,
ecos de rios cortando a floresta.
Não é o nome que temos, é o desejo de se ver,
e o que vês em mim é teu próprio rosto
e tudo que esperas é tu mesmo.
Por isso buscas a imagem do espelho
em que mergulhas.
Esse colorido diáfano que nos encanta.
Nenhum vento cicia.
Sussurram as fadas em uníssono.

7.

UM LONGO POEMA SE ENRODILHA
e se desenrola a partir de ti.
Teces com teu casulo a mortalha de teus dias
para ressuscitar por causa do meu amor.
Com um manto cobres todas as tuas horas,
teu hálito, teu pensamento,
tudo que te compõe e te faz inteiro.
Se eu escrevia para alguém,
escrevia para ti, sem o saber.
Agora sei.

8.

SE BUSQUEI A FELICIDADE
onde não estava
e encontrei o meu reverso,
pelo menos ela veio ao meu encontro,
por não poder mais se apartar de mim.

9.

E TODAS AS COISAS SERÃO SILÊNCIOS
diante de tua fala
pois a paixão se alastra por onde falta
a penumbra a se alojar sobre a palavra.
Vivemos em agudeza de pressentimento
tudo imerso em diluída esfera
nascendo em mim como a antevéspera
do agora.
Não serei mais o que não fui
não há mais tempo para isto.
Sou apenas o que sou
e assim não há mais a espera.

10.

EU TE ILUMINO COM MINHAS FALAS
todas enquanto me movo até onde estás
em tua forma distendida e bela
alvos mantos de tua antiga febre.
Eu te transformo no além-dia
a manhã de todas as horas
em que buscamos larguidões
que conhecemos e desconhecemos
também.
Tudo se resume a isto:
dizer o que se vive e nada mais.
Enquanto nos importe apenas o momento
o tempo será o único alicerce da nossa história.

11.

O DIA EM QUE PENSAS NÃO SEREM
mais necessárias as âncoras do coração
para lançá-la ao mar num pequeno ponto e ancorar,
surgem calmarias e outras paisagens.
Nenhum homem é uma ilha,
mas é em uma ilha que descobres que és parte de outra terra.
Ninguém está só, mas o oceano te liga a todas as partes
e te permite velejar até teu ancoradouro.

12.

BREVE É O TEMPO QUE TEMOS,
sempre fulgor de momentos,
encetados como plumas sobre a cabeça real.

Vivemos uma diáfana poesia,
sem poder tocá-la,
e apenas a respiramos.

Para mim breve é a hora que vivemos de cada segundo que passa,
mornidão de manhã derradeira antes da despedida.

Breves pássaros, como tudo que é breve na natureza,
esse encurtamento de existência que sequer principia.
Bebo tuas palavras e elas se tornam minhas.

Minhas entranhas se saciam de teu jorro.
Eu, febril por teu amor e devota de tuas mãos,
ergo-te em vôo,
meu mais amado homem,
meu mais amado amor,
princípio e fim de meus tormentos,
dor última e fugaz,
que me rende estática e exangue,
filha do acaso,
lânguida.

Por ti, toda eternidade é tua.

13.

DESPERTO A UM PÁSSARO
que ainda canta nesta manhã de bruma,
longínquo sobre uma haste qualquer de árvore,
misturados aos sons desta manhã tão terna,
sem horizonte, só o triste olhar na névoa.
Ergo-me ao passar a hora, um novo alento para um novo dia,
a cada passo aguardando, atenta,
o que for tristeza ou alegria.
À tua voz eu paro e te escuto. Tudo que dizes é imperioso.
Nem mais feliz por minha escolha, mas por todas que fizeres.
Eis-me como em último momento,
nada há para me dar certezas senão um coração
que há muito insiste em ser amado e amar-te apenas.

14.

TEU SILÊNCIO É UMA FALA INAUDÍVEL
entranhada como luz entre as frestas
instalando-se antes do dia.

Teu furor pesa como pedra.
Tua casca aberta ao relento.
Teus sóis, boreais firmamentos.

Teu silêncio ocupa o oco da esfera
pousada sobre o deserto.

Lágrimas secam na areia
junto ao teu sangue e suor.

Qualquer brisa vem
alisar estes coqueiros.

Tâmaras, figos e pêssegos
para alimentar-te depois.

Minha voz não ouves.
Nem ouves o vento.

Só o marulho da fonte
a escorrer por teus dedos.

15.

PARA AMAR, NASCEMOS
e tudo que nos foi dado
é vivido sem última trégua,
sem mágoa, sem arrefecimento.
O que vives é teu alento, tua morada,
teu templo, teu sacrário,
mão de Zeus pousada sobre tua cabeça.
Assim tua poesia te ergue, teu hino profundo,
visão de Olimpo, mar aberto,
vastidão de vida cravada em teu peito como chaga.

16.

TUAS ODISSÉIAS, PÉRIPLOS, VIAGENS
te levam além de ti mesmo
o que buscas é a casa onde não te encontras
versos, dádivas, jóias a cobrir teus dedos

persegues as auroras, todas brandas, todas findas
teu arco sobre o monte, visão última do paraíso
teus olhos vagam à procura do horizonte

nele estás e estás onde habito
tu, frescor de dias, eu, rubor de alma
vives outra vez, razão e pensamento

eternidade ungida de infinito

17.

SILENCIOSA ESTAÇÃO DE PARCOS FRUTOS,
laboriosa estrela de mil tentáculos,
cede teu olhar sobre mim
antes que eu passe.

Afaste a bruma,
o nácar sobre minhas têmporas,
fala inaudível de tua paisagem,
a vislumbrar-me de onde estou.

Me trazes qualquer coisa minha
antes de eu conhecê-la.

Me devolves o que nunca tive
ou nunca soube que havia.

Silenciosa estação de magros frutos,
senda de peregrinos e viajantes,
palmilha teus passos até meu destino,
onde me encontro cativa de mil regaços.

Terão passado os dias,
as fomes e as secas,
o labor recomeçará no campo
e vida retomará seu curso.

Tudo segue, tudo verte, tudo vai.

Vai além de mim ou de ti,
pois tuas obras ainda
começam.

18.

VÊ-TE.
A serra aguda de todos os seres,
balsâmicos talos de oriundas imagens,
secretíssimos rios serenos e suas margens
a navegar por onde passam a pêlo.

Enfim,
as coisas cerram-se em si mesmas
por pertencerem a outro modo de existência,
percebendo toda a história antiga nos afrescos
em todas as paredes.

Ergue-te.
Não passarão as tuas horas a esmo,
por seguires os mesmos tormentos,
heras, garças, plumas de aves aquáticas,
dorso de peixes a preencher os horizontes.

Vejamos:
A esfera posta sob o arco desenha um perfeito
pássaro emplumado, azul em sua pose, rarefeito
como arte, símbolo e graça. Serão eles os póstumos
de tudo para orar e ornar o pensamento.

Serão
estas as horas lembradas e depois esquecidas
por onde seríamos os mesmos a firmar, atentos,
e não havermos nunca retornado os passos,
porém, sós, antes e hoje, mais cedo.

Eis
o que restou dos dias e meses que se passaram.
O que sabemos, deixamos abandonado
a cismar sobre o havido, o perdido, o nada.
E aqui estamos por sermos os que ficaram.

19.

DÁ-ME A IMPRECISA FLAMA
a iluminar todas as horas,
caos, subterfúgios, auroras,
segmentos do mesmo dia dilacerado,
esta véspera que nunca finda,
um tardar mais cedo e denso,
por sermos sempre o últimos a saber.

Reconta a história dos heróis,
estes que lavram os dias
como o campo de suas escolhas.

Dormem as florestas que perdemos,
dorme a diminuta semente,
devolvida à terra para morrer.
E de seu corpo nascerão os ramos,
as cascas, folhas e frutos,
tudo que vive pouco, mas que vive
apenas para ser.

20.

toda palavra é ato e verdade(JJMF, in Périplo)

TODA PALAVRA VERTE UM LÍQUIDO INVISÍVEL E ESPESSO
toda palavra é cáustica e pungente
toda palavra recende a uma flor no jardim
toda palavra cose o tempo à sua altura
toda palavra seca ao sol e à penumbra
toda palavra ouve e vê e sente e chora
toda palavra é caos

21.

A MORNIDÃO NÃO PASSA DE UM AUGÚRIO.
A viagem antecipa em nós a bruma
leitosa paisagem de nenhum dia
espelhada em nossos olhos como nuvem.
Despe todas as horas de seus signos.
Te serão dados os tormentos
para que possas desfazê-los
sem deixar nada sobre o limo.
A tarde verte, curta, a fração de seu reflexo.
A espera basta, triste,
em que o gesto é o único alimento.
Estas viagens nunca terminam.
Ficamos sempre à espera da chegada
para que outras partidas se preparem,
e entre uma e outra aconteça
tudo o que não aconteceu
antes.

22.

CEDO NÃO DIZEMOS AURORAS.
Logo em marés dissolvemos medos.

Todas as naus são restos de outrora
toda seiva, toda pompa, toda hora.

Serão marcados os caminhos pelos olivais.

Tua bênção, bendição extrema
serve a mim e a ti por igual.

Servirão os troncos para a casa
bússola côncava
o nada imenso sobre o copo emborcado.

Servirão os dias a si mesmos
e a nós, apenas a chama.

Este lume entre os olhos
horizonte imaginado e extremo

longitude de teu ombro largo
vida passada e nada mais.

23.

Enche o corpo com teus sonhos,
doce, meiga, triste mulher que olha.
***
As palavras um dia serão desertos.
***
Sê um poço no deserto,
fundo e escuro mar
de onde brotará, um dia,
a última palavra que beberei em minha boca
.

JJMF, “Súplica de amor”, in Poemas em Jó


Eis o teu rosto, agora,
sem sonho de que desperte,
sem doçura mais que o acalente,
tua tristeza extensa e longa,
mar bravio, interminável.

As palavras um dia te deixarão à míngua,
um deserto maior do que o imaginado,
de tanto buscares o que não encontras.

E neste deserto, haverá um poço para tuas securas,
para saciar tua sede de infinito.

Eis a mulher que te olha.
Seu corpo de sonho te adora.
É meiga, é doce e triste,
pois não há tristeza maior do que amar
e não ver o rosto no rosto que se mira.

A mulher será sempre triste,
ou senão não será mulher.
Por maior que seja a alegria de te amar,
haverá sempre um mar por atravessar
e outros portos cansados de cais.

Verás. Assim serão todas as buscas.
Tua boca se calará e, enquanto houver deserto,
o mar ecoará ao longe.

24.

AS PALAVRAS NÃO SERÃO CONSOLO.
Antes o silêncio responderá por nós.
O que temos está em meio à bruma
E a paisagem se mistura aos sonhos.

Erguemos o passado de sua tumba,
nó de algas moribundas,
o que passou não abre mais a chaga,
mas guarda tudo em sepultura.

És o viajante a toda hora,
céu firme, mar inconstante,
se ventos te levam, outros te trarão,
numa eternidade de chegadas.

Nascemos de um mesmo gesto,
um mesmo poema não escrito.
Hoje se resume ao dia,
amanhã, a uma vida.

O que importa em viver
é ter vivido.

25.

EROS

Nada há mais belo
do que o sono de quem ama.
Quando dorme, o amor não sonha,
não sofre, não dói.
Mas se é da terra, onde sopra a vida,
devo flechá-los e, cálida ferida,
florescer no corpo e revolver a alma,
e despertar a dor, para que seja querida
como o dom da vida,
que desperto em meu amor.

(JJMF)


PSIQUE

Minha saudade
não se esquiva
– vai aberta como pétala,
ousa o vento,
ora os dias, ora o tempo
sempre vivo.
Do meu sono não desperto.
Vivo à margem de outra voz
que não a minha.
Minha saudade é um rio largo
em que mergulho as minhas horas.
Minhas palavras não alcançam
o contorno de teus ouvidos
nem as tuas vertem
sobre meus lábios.
Mesmo assim te ouço
enquanto falo.
Minha saudade me suspende
entreviva e me alcança
onde já não mais existem
fábulas que contem o que vivo.
Se este rio, estas águas
me levam aonde estás,
um muro de heras se ergue
para guardar-te.


26.

ESCUTA TODAS AS COISAS.

As febres são claras
e quanto mais nos debruçamos
mais veremos de horizonte.

A vida é transparente
e em seu invólucro cabe tudo,
do gesto não feito
à palavra imaginada.

Destecemos por dentro
o que foi outro.
Refazemos o percurso conhecido.

De tudo somente fica o que for
para ser vivido.

27.

ENQUANTO TUDO FOR SEGREDO
vida e morte andarão juntas
à beira de um precipício
ansiado.

Não nos deixa o fardo de todas as coisas
imprevisíveis sinais abaulados
em que a longa mão alcança
o naco de tristezas imponderáveis.

Bebemos a antiga angústia
em cálices remotos
e de nosso ventre verterão
lagos

profundos olhos de deuses
falhos.

28.

O DIÁLOGO APENAS EXISTE PELA POESIA.
Não há outro modo de ser,
outra face que eu reconheça,
outro modo de amar-te,
embora nele se incluam
todas as formas.

29.

ESPERO CADA COISA A SEU TEMPO,
sem esperar demais,
sem desesperar,
sem ter nada mais senão este momento
que encerra tudo dentro dele.

30.

MEU AMOR POR TI É O MESMO,
sempre, mesmo que o dia seja turvo
e tudo à minha volta desmorone,
pois aprendi a reconstruir do nada.
E mais uma vez a vida reinicia.
Ao teu lado.
A beleza de poder partilhar contigo pequenas coisas
me dizem quão imperioso é tudo isso.
Mesmo que me perscrutes e esquadrinhes
todos os meus olhares,
mesmo que eu nada queira dizer em palavras,
busco sempre o sentido último,
máximo de nossa existência juntos.
Sou a que conheces.
A mulher que amas.
E assim me sinto.
Última a galgar esses degraus de mármore.
A vida colocada diante de nós como oferenda,
antecipando o futuro com nossas palavras.
Tudo dito e tudo consumado para que se perpetue.
Só te peço mais calma,
um olhar mais brando,
menos aflito para tudo que nos acontece.
Sou como és,
não posso te dizer tudo ao mesmo tempo,
mas suavemente direi o que tenho para te dizer,
mesmo que eu ainda não saiba,
mesmo que seja segredo até para mim.
Vivemos o melhor e o pior de tudo, mas muito mais o melhor.
Como tu mesmo dizes, nunca fomos tão felizes.
E nunca amamos tanto.
Nunca pudemos nos dedicar por tanto tempo a uma só pessoa.
Digo, continuamente. Amiúde.
Sou esta que vês. Quem tu amas.
Frágil muitas vezes, outras, mais forte,
mas não me sinto mais só,
mesmo que não possamos evitar o desamparo
evitar em todos os momentos.
Sou para ti o que não fui nem para mim mesma.
Nunca experimentei o que vivo ao teu lado, sozinha.
E assim quero que seja, antes de tudo.
Espero-o amanhã. Em casa.

31.

Vagando num mundo onde nunca estive, ando com você,
e o andar tira de mim o peso das palavras.
Neste silêncio precipitado de meu abismo, do meu espelho,
sei que todos os nomes que em ti encontrei
se resumem finalmente e cabem na palavra amor.


JJMF, in O mar de Ulisses

IRMÃO, AMIGO, SENHOR, MESTRE, SANTO,
AMADO, OSÍRIS REMEMBRADO,
Tudo que me dizes é um poema.
Tudo que lhe escrevo vem por inspiração do que vivemos.
Tudo flui com a naturalidade das horas, dos minutos, dos segundos.
Hoje as noites e os dias se sucedem como o inspirar e expirar de nosso alento,
viver além da morte das pequenas coisas, deixá-las passar, deixá-las ir,
para que surjam novos frutos, novos lagos, novos horizontes.
Recolho teus membros do corpo mais amado,
revivificado, ressuscitado, ressurgido pelo teu próprio amor,
tu, meu deambulador de auroras.

32.

ENQUANTO DORMES
acalentas teu insone presságio
sobre a flecha que hesita em teu arco.
Enquanto feres o amor
ele te adoça as entranhas, nasce de outros ritos,
fecundando em ti o que te resta
de paraíso.
Brotarão as fontes da terra quente,
pedras a sorver o sumo de um leito de águas.
Tece na folha teu umbral longilíneo,
desenha em teu olhar a púrpura centelha,
mói a palavra em tuas sementes,
espalhando o óleo de teus gestos santos.
Ora. E em teu verdor não haverá outro instinto.
Tem em mim tua benigna seta,
cumprindo teu verso,
desvestindo o lodo do mais puro lírio.

33.

SER PERFEITA À TUA IMAGEM E SEMELHANÇA
de um deus que amanhece em meus braços,
tirada de teu flanco e ter moldada a face sem o pranto.
Assim como ergues, destróis, num único movimento,
Hércules cumprido e coroado.
Afeiçôo-me à dor de buscar-te entre sendas de toda sorte,
seja este o destino das palavras, seja eu a perfeição de tua fala.

34.

CONSTRUÍ UMA MORADA SOBRE A PEDRA
à beira de um rio que corre entre as margens de outro tempo,
infestado de lírios e aves do paraíso, pousadas em sua própria eternidade.
Virão outros dias visitar as mesmas cercas e alambrados,
a persistir em auroras que não vemos, marcar na pedra o nome e a hora,
para que reste ao menos a memória ante a permanência.
Serão as casas, taciturnas a olhar a rua, todos os refúgios conhecidos,
todos os séqüitos e passagens, para que não bastem as palavras
e o olhar se restitua como fala.
Embora os dias nos emprestem seus desejos,
vivemos além das eras, onde o perigo de estar consigo mesmo
se iguala às vicissitudes de não ser senão quem és.

35.

JÁ NÃO POSSUIR TUA FRONTE,
outra alvura de teu cerne,
ombro, febre, natividade e instinto,
sempre o olhar, este vago louco,
urdiduras de tua carne, nácar,
frêmito, lagar de fomes imorredouras,
tua superfície longa e infinita,
teu punhal, adaga a ceifar a seiva.
Vives e com isso vertes, lonjuras
de tua pele imensa,
nobre, fina, uma imensidão
indevassada e limpa,
todo langor de tua sépia imersa,
todo marejar de teu semblante ausente,
aquosa fronte de maresia,
súbita, manhã escassa,
vinda até a mim.

36.

LENTA MÃO,
tez cálida,
ermo traço, perfil sombrio,
odor e nácar,
verdor e cisma.

Nada detém a mão do gesto,
este o olhar a tombar na treva,
fome tão prenhe de passado, e agreste,
lavra, langor de teu corpo inerte,
tíbia fala, meu irmão de causas,
esse pálido ser que retorna,
fímbria face, visão de ocaso,
amigo, antigo e íntimo.

37.

JÁ NÃO CABEM OS NOMES ÀS COISAS
como antes as conhecíamos, pois
tudo recomeça de onde as deixamos,
os largos, as enseadas, grotões profundos,
olhos que trafegam a eleição das fontes,
favos adversos, flama sem fim.

Ergo-me, embora tão avessa,
a face renovada,
o sorriso a entreter os lábios,
voz e palavras ocas, nada
que reste sobre o colo, nada
nem um gesto a esquecer a hora.

Verto outro líquido de memória,
visão de mim permanente,
senão a vida posta num átimo,
amada fronte, amado ser.

38.

MEU
por decidires assim
suspensa flor em seu caule
a conter o néctar
e o perfume de teu silêncio.

Vêem os olhos toda penumbra
que lhes resta
entreabertos lábios de espanto.

Tua
forçosa mão que te conduz
translúcida fala
sem o canto.

Vida de entremeio e arresto
ranger de dentes
e fadiga extrema
de pôr ao colo o filho dado
véu de sono
abandonado quarto.

Vemos
além do tempo
o dissolvido contorno
da cabeça sobre os braços.

Assim são
os dias, sem demora.
Assim são
todas as horas e esperas.
Assim seguirão,
pastagens e paisagem,
em um uníssono descampado
habitadas pedras
ermos charcos
desabitados lagos.

Essência, estupor de alma
a vida entre as mãos
e liberta.

39.

NADA SE DISSOLVE
em abismo.

Ora verto descompassado
feltro
ora ouço
assimétrica fala.

Nada te sustenta suspenso.

És outra fria hora
outro longínquo olhar
outro fremir
outro ermo.

Nada te descobriria
o réquiem
o mordiscar de balas
a lágrima vítrea
sobre o lábio seco.

Nada.
E mais nada houvesse
mais denso
serias.

40.

BASTA QUE EU RECOMECE
atenta
o seixo sobre os dedos
a palma da mão suspensa.

Ergue-se entre ti e o tempo
a fronte séria de teu olhar
a voz rouca e destemida.

Jamais passarão sobre nós
jamais nos deixarão
jamais serão nossos
os acasos fortuitos
flagrantes e inesperados.

Seremos essa réstia
de poucas horas
orlas de beijos
narcisos e espelhos.

Resta esta antigüidade próxima
um decassílabo
uma fome maior que o alimento
a sorver a pétala antes que
desapareça.

41.

POR QUEM ME TOMAS
não sou.
Não sou quem desprezas
nem o avesso que não tenho.
E sem aceitar
qualquer medida,
renascerei
aos teus olhos
que vêem
o que em mim não há.

Sequiosos, lançamo-nos na oca e lisa
face de uma hora, a ordem clara,
os dedos frágeis sobre o dorso,
a palma da mãos a sustentar teu peso,
tua solidão.

Um dia não é senão o avesso,
a translúcida membrana de um réptil
enclausurado.
Nada, dia algum me basta,
por ser sempre outro.

42.

EMBORA EM TEU SONHO
te bastes
não refletes sobre a água
o brilho que vês.
Aquilo que te sobra
em teu desígnio
é espada e fel.
O que de teu espírito
se curva para ti mesmo
sussurra em teu ventre
como a maré prenuncia
a borrasca.
Deita ao vento os cabelos
de outrora:
toda cisma é dia
todo dia tem sua hora.
E cada hora, um alento
que te detém.
Teu sofrimento não basta.
Haverá outros.
E muitos mais até partires
ao meio
como navio que deixa
de navegar.

Tens horizonte de sobra
para tantos viajantes
em ti.

43.

VIDA, ESSE
entreabrir e fechar de pausas,
nascedouro imorredouro,
flama, jubiloso átimo,
fremir e instante,
luminescência
ante a porta de outro paraíso,
natureza sobreposta
de teu frágil perfil.

44.

É SEMPRE NOITE
em tua casa de betume
negras facas
negros talhos
alforje de carne
fóssil preso num invólucro
de pedra.

Te pertence o tempo
inscrito em tua pele
veste de nácar
pérola dentro da ostra
tua fala a dos peixes
boquiabertos.

Salva os negros olhos
que te olham
manso negror de tua casa
fria.

É sempre noite
nos porões e sótãos
de lustres apagados
e baús esquecidos.

24/01/2006 – 7/10/2006